O ex-Presidente cabo-verdiano, Pedro Pires, considera que Angola permanece em transição, com a liderança de João Lourenço e as reformas iniciadas, e lamentou que a “moda” de contestar resultados eleitorais em África tenha chegado a Moçambique. Pelo menos em matéria de fraudes eleitorais ele sabe do que fala…
A posição foi assumida pelo antigo chefe de Estado cabo-verdiano (2001 a 2011) em entrevista à Lusa a propósito do último “Relatório sobre a Governação Africana da Fundação Mo Ibrahim”, instituição que lhe atribuiu (imerecidamente) o Prémio de boa governação em 2011.
“Angola vive um momento de transição, é normal que nas transições haja mudanças, reformas, vamos entender que o país vive uma transição, o país vive um momento em que fazem reformas, na ideia de melhorar a governação (…) Quando há substituições de equipas de gestão, de pessoas, de partidos ou de gerações, temos de aceitar que se entra num período de transição e que as novas lideranças vão procurar fazer reformas”, enfatizou o antigo chefe de Estado e um dos líderes da guerra da independência na Guiné-Bissau.
Não se sabe onde é que, no caso de Angola, Pedro Pires foi buscar essa peregrina ideia, mesmo que figurativa, de “reformas” “substituição de pessoas, de partidos ou de gerações”. É que, há 44 anos, em Angola apenas se substitui seis por meia dúzia, sendo sempre o mesmo partido – o MPLA – a mandar, e em que até o Presidente da República era vice-presidente do partido e ministro do anterior Chefe de Estado.
Angola atravessa uma profunda crise económica, financeira e social resultado da criminosa governação do MPLA, precisamente quando João Lourenço – que os seus bajuladores dizem ter iniciado uma suposta profunda agenda reformista e suposta ruptura com o passado (do qual foi protagonista principal, quer como vice-presidente do partido quer como ministro) – completa dois anos como Presidente da República, depois de ter sucedido em 2017 a José Eduardo dos Santos, que esteve 38 anos no poder. Ambos sem serem nominalmente eleitos, acrescente-se.
“Acho que Angola está num período de transição, há uma substituição de geração, de liderança e é normal que se queira fazer reformas. Todas as reformas são complicadas, não são simples, se partirmos do princípio que uma reforma é simples basta substituir pessoas, basta mudar de políticas, não é assim, as reformas fazem-se todos os dias, gradualmente”, alertou Pedro Pires.
O também antigo primeiro-ministro de Cabo Verde acrescentou que à mudança de líderes e de equipas há que somar a reacção do povo, cabendo à liderança a “formação e informação das pessoas”, bem como a “mobilização de vontades”.
“As pessoas têm de se adaptar ao novo estilo, aos novos objectivos. Trato isso tudo como normal nas reformas, nas substituições, nas transições, na liderança de um país. Que é um país grande, complexo, que fez uma longa guerra, não é tão simples como parece”, disse ainda.
Já sobre Moçambique, com a recente reeleição de Filipe Nyusi como Presidente da República e a contestação da Resistência Nacional Moçambicana (Renamo), que não aceita os resultados das sextas eleições gerais, realizadas em 15 de Outubro, Pedro Pires lamenta o que diz ter-se tornado “moda” em África.
“Contestação nos países africanos dos partidos que perdem passou a ser moda, as análises devem ser o seguinte: cada um assume a sua responsabilidade, se perdi, perdi, se ganhei, ganhei. Se perdi, espero pela próxima oportunidade e vou corrigir o que não teria feito bem, terá que ser nessa perspectiva de ver a política a médio e longo prazo, não ver a política a curtíssimo prazo, como se tem feito até agora”, observou, acrescentando que é preciso “ver a política para além do poder”.
“Se nós vemos a política somente com o intuito de conquistar o poder, aí temos dificuldade”, lamentou.
Entre os países lusófonos, o “Relatório sobre a Governação Africana da Fundação Mo Ibrahim”, lançado em Outubro com o objectivo de avaliar o progresso em termos da implementação dos Objectivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS, Agenda 2030 da Organização das Nações Unidas) e da Agenda África 2063, elogiou Cabo Verde e São Tomé e Príncipe.
Os dois países africanos de língua portuguesa destacam-se por fazerem parte de um grupo de oito países africanos com sistemas operacionais de registo de natalidade e óbitos para mais de 90% da população.
A Fundação, que baseou este estudo nos dados do Índice Ibrahim de Governação Africana (IIAG), concluiu que “os institutos de estatísticas nos países africanos em geral sofrem de falta de recursos financeiros” e de apoio dos governos.
Segundo o relatório, quase metade das metas da Agenda 2063 – definida pela União Africana – não é directamente quantificável e menos de 20% não possui um indicador para medir progressos.
Mais de metade dos tipos de fontes de dados sobre os indicadores dos ODS em África correspondem a estimativas ou estudos internacionais e apenas um terço das fontes de dados são de fontes directas nacionais, segundo o estudo.
Bons e maus corruptos, segundo Pedro Pires
A corrupção é um fenómeno mundial e transversal e não um exclusivo do continente africano, explicou em Novembro de 2015 Pedro Pires, defendendo também que, em África, é errado confundir um regime autoritário com um ditatorial.
Considerando a experiência de Pedro Pires, até mesmo como observador em eleições supostamente livres e transparentes em Angola, atente-se no que ele diz, nomeadamente a bem dos amigos no caso angolano o MPLA.
Em entrevista telefónica a partir de Acra, capital do Gana, onde assistiu à entrega do Prémio Mo Ibrahim de Boa Governação a Hifikepunye Pohamba, antigo chefe de Estado da Namíbia, Pedro Pires admitiu, porém, que África perdia anualmente 50.000 milhões de dólares com “actos ilícitos”.
“A corrupção não é um fenómeno africano. Às vezes, tem-se a impressão de que se quer atribuir só aos africanos o título de corruptos. A corrupção é hoje um fenómeno mundial e há algumas corrupções que me chocam, como entender o debate que se faz agora à volta da FIFA e de determinadas federações de atletismo”, exemplificou.
Só algumas corrupções é que chocam? Pois. Todos, sobretudo os africanos, sabem o que isso significa. Há, portanto, boas e más corrupções. Tudo depende de se saber quem as faz e quem delas beneficia.
Para Pedro Pires o fenómeno da corrupção é “transversal” e “abrange e chega a todo o lado”, pelo que, para o combater, é necessário também uma participação global.
“Hoje, em África, debate-se a questão dos chamados Fluxos Financeiros Ilícitos (FFI). África perde 50 mil milhões de dólares por ano em práticas que estão muito próximas da corrupção, como a subavaliação dos preços, a fuga ao fisco ou as isenções para se conseguir cada vez maiores lucros, e as transferências fraudulentas”, sustentou.
Pedro Pires alertou, por outro lado, para que “não se confunda” um regime autoritário com um ditatorial, que são questões “diferentes”.
São? Vejamos. “A boa governação não se limita aos resultados económicos, porque há, de facto, regimes autoritários que conseguem um bom índice de crescimento económico. Essa ligação entre a democracia e o desenvolvimento não é automática. Há que ver isso com alguma objectividade e perspicácia”, sustentou.
O outro lado de Pedro Pires
Em 2012 Pedro Pires chefiou a Missão de Observadores da União Africana às “eleições” em Angola. Estando à vista, por muito benevolentes e ingénuos que fossem os que se interessam por Angola, a possibilidade de fraudes na votação desse ano, nada melhor do que escolher um observador amigo e que, em 2001, ganhou as eleições presidenciais cabo-verdianas à custa de uma fraude.
No dia 16 de Junho de 2010, quando recebeu o seu homólogo e amigo da Guiné Equatorial, ficou a saber-se que o então presidente de Cabo Verde era cada vez mais apologista da entrada do reino de Teodoro Obiang Nguema Mbasogo na Comunidade de Países de Língua Portuguesa.
Na altura, os mais ingénuos estranharam que Pedro Pires tenha barrado os jornalistas quando estes, numa coisa a que se chama liberdade de imprensa, se aproximaram para chegar à fala com Teodoro Obiang.
Pedro Pires impediu as câmaras da televisão de filmarem a entrada para o veículo oficial que levou Obiang para a Assembleia Nacional, o que gerou manifestações de repúdio dos jornalistas, tal o ineditismo do gesto, que foi mostrado e comentado de forma crítica pela televisão local.
Segundo a Repórteres Sem Fronteiras, em 2009 Cabo Verde tinha caído do 36º para 44º lugar em matéria de liberdade de imprensa. Se calhar, na altura enquanto presidente, Pedro Pires entendeu que proteger um ditador é até uma qualidade, sobretudo petrolífera, que pode render muitos pontos.
Teodoro Obiang, que a revista norte-americana “Forbes” já apresentou como o oitavo governante mais rico do mundo, e que depositou centenas de milhões de dólares no Riggs Bank, dos EUA, tem sido acusado de manipular as eleições e de ser altamente corrupto.
Obiang, também ele amigo de todos os “queridos líderes” do MPLA, chegou ao poder em 1979, derrubando o tio, Francisco Macias, foi reeleito com 95 por cento dos votos oficialmente expressos (também contou, como é hábito, com os votos dos mortos), mantendo-se no poder graças a um forte aparelho repressivo, do qual fazem parte os seus guarda-costas marroquinos.
Folha 8 com Lusa